segunda-feira, 2 de março de 2015

A LEI, SINAL DA ALIANÇA

3º DOMINGO DA QUARESMA ANO B

Ex 20,1-17; Salmo 18 (19); 1 Cor 1, 22-25; Jo 2, 13-25


A liturgia do 3º Domingo da Quaresma dá-nos conta da eterna preocupação de Deus em conduzir os homens ao encontro da vida nova. Nesse sentido, a Palavra de Deus que nos é proposta apresenta sugestões diversas de conversão e de renovação.

Na primeira leitura, Deus oferece-nos um conjunto de indicações (“mandamentos”) que devem balizar a nossa caminhada pela vida. São indicações que dizem respeito às duas dimensões fundamentais da nossa existência: a nossa relação com Deus e a nossa relação com os irmãos.

Na segunda leitura, o apóstolo Paulo sugere-nos uma conversão à lógica de Deus… É preciso que descubramos que a salvação, a vida plena, a felicidade sem fim não está numa lógica de poder, de autoridade, de riqueza, de importância, mas está na lógica da cruz – isto é, no amor total, no dom da vida até às últimas consequências, no serviço simples e humilde aos irmãos.

No Evangelho, Jesus apresenta-Se como o “Novo Templo” onde Deus Se revela aos homens e lhes oferece o seu amor. Convida-nos a olhar para Jesus e a descobrir nas suas indicações, no seu anúncio, no seu “Evangelho” essa proposta de vida nova que Deus nos quer apresentar.

1ª Leitura – Ex 20,1-17
Leitura do Livro do Êxodo

Naqueles dias, Deus pronunciou todas estas palavras: «Eu sou o senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, dessa casa da escravidão. Não terás outros deuses perante Mim. Não farás para ti qualquer imagem esculpida, nem figura do que já existe lá no alto dos céus ou cá em baixo na terra ou nas águas debaixo da terra. Não adorarás outros deuses nem lhes prestarás culto. Eu, o senhor teu Deus, sou um Deus cioso: castigo a ofensa dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que Me ofendem; mas uso de misericórdia até à milésima geração para com aqueles que Me amam e guardam os meus mandamentos. Não invocarás em vão o nome do Senhor teu Deus, porque o Senhor não deixa sem castigo aquele que invoca o seu nome em vão. Lembrar-te-ás do dia de sábado, para o santificares. Durante seis dias trabalharás e levarás a cabo todas as tuas tarefas.Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus. Não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo nem a tua serva,nem os teus animais domésticos, nem o estrangeiro que vive na tua cidade. Porque em seis dias o Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo o que eles contêm; mas no sétimo dia descansou. Por isso, o Senhor abençoou e consagrou o dia de sábado. Honra pai e mãe, a fim de prolongares os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te vai dar. Não matarás. Não cometerás adultério. Não furtarás. Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo“.Não cobiçarás a casa do teu próximo; não desejarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo nem a sua serva, o seu boi ou o seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença».

MENSAGEM

O “decálogo” abarca os dois vetores fundamentais da existência humana: a relação do homem com Deus e a relação que cada homem estabelece com o seu próximo.
Os primeiros quatro mandamentos dizem respeito à relação que Israel deve estabelecer com Deus (vers. 3-11). Dois, sobretudo, são de uma tremenda originalidade (o mandamento que obriga Israel a não ter outro Deus, outro Senhor, outra referência; e o mandamento que proíbe construir imagens de Deus), pois não encontram paralelo em nenhuma das religiões antigas que conhecemos.

A questão essencial que sobressai, nestes quatro mandamentos, é esta: Jahwéh deve ser a referência fundamental da vida do Povo, o centro à volta do qual se constrói toda a existência de Israel. Nada nem ninguém deve ocupar, no coração do Povo, o lugar que só a Deus pertence. É preciso que Israel reconheça que só em Jahwéh está a vida e a salvação (vers. 3: “não terás nenhum deus além de mim”); é necessário que Israel reconheça a absoluta transcendência de Jahwéh – que não pode ser reproduzida em qualquer criatura feita pelo homem – e não se prostre perante obras criadas pela mão do homem (vers. 4: não farás para ti qualquer imagem esculpida… não hás-de prostrar-te diante delas, nem prestar-lhes culto”); é preciso que Israel reconheça que não deve manipular Deus e usá-l’O em apoio de projetos e interesses puramente humanos (vers. 7: “não hás-de invocar o nome do Senhor teu Deus em apoio do que não tem fundamento”); é preciso que Israel reconheça que só o Senhor é o dono do tempo e que reserve espaço para o encontro e o louvor do Senhor (vers. 8: “hás-de lembrar-te do dia de sábado, a fim de o santificares”).

Os outros seis mandamentos dizem respeito às relações comunitárias (vers. 12-17). Procuram inculcar o respeito absoluto pelo próximo – a sua vida, os seus direitos na comunidade, os seus bens. São “a magna carta da liberdade, da justiça, do respeito pela pessoa e pela sua dignidade”. Recomendam que cada membro da comunidade reconheça a sua dependência dos outros e aceite a sua vinculação a uma família e a uma cultura (vers. 12: “honra teu pai e tua mãe”); pedem que cada membro do Povo de Deus respeite a vida do irmão (vers. 13: “não matarás”); recomendam que seja defendida a família e respeitadas as relações familiares (vers. 14: “não cometerás adultério”); exigem que se respeite absolutamente quer os bens, quer a própria liberdade dos outros membros da comunidade (vers. 15: “não tomarás para ti” – o que pode referir-se a pessoas ou a coisas. Pode traduzir-se por “não roubarás”, mas também por “não privarás de liberdade o teu irmão, não o reduzirás à escravidão”); pedem o respeito pelo bom nome e pela fama do irmão, nomeadamente dando sempre um testemunho verdadeiro diante do tribunal e garantindo a fiabilidade de uma justiça que é a base da correta ordem social (vers. 16: “não levantarás falso testemunho contra o teu próximo”); exigem o respeito pelos “bens básicos” que asseguram ao irmão a sua subsistência e procuram evitar que o coração dos membros da comunidade do Povo de Deus seja dominado pela cobiça e pelos instintos egoístas (vers. 17: “não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás a mulher dele, nem o criado ou a criada, o boi ou o jumento, nem coisa alguma que lhe pertença”).

Porque é que Deus apresentou estas propostas a Israel e lhe recomendou este caminho? Qual o interesse de Deus em que Israel viva de acordo com as regras aqui apresentadas? O que é que Deus “tem a ganhar” com a fidelidade do Povo a estas normas?

A resposta a esta questão está na primeira afirmação do Decálogo: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egipto, da casa da servidão” (vers. 2). Jahwéh, o Deus libertador, está interessado em que Israel se liberte definitivamente da escravidão e se torne um Povo livre e feliz. Os “mandamentos” são, precisamente, um contributo de Deus para isso. Ao colocar estes “sinais” no percurso do seu Povo, Jahwéh não está a limitar a liberdade de Israel, mas está a propor ao Povo um caminho de liberdade e de vida plena. 

Os mandamentos pretendem ajudar Israel a deixar a escravidão do egoísmo, da auto-suficiência, da injustiça, do comodismo, das paixões, da cobiça, de exploração… Os mandamentos nascem do amor de Jahwéh a Israel e procuram indicar ao Povo o caminho para ser feliz. A resposta do Povo a essa preocupação de Deus será aceitar as indicações e viver de acordo com esses preceitos. Israel responderá, assim, ao amor de Deus e será feliz. É essa Aliança que Jahwéh quer fazer com o seu Povo, é esse o “interesse” de Deus.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18 (19)
Refrão: Senhor, Vós tendes palavras de vida eterna.

A lei do Senhor é perfeita,
ela reconforta a alma;
as ordens do Senhor são firmes,
dão sabedoria aos simples.

Os preceitos do Senhor são retos
e alegram o coração;
os mandamentos do Senhor são claros
e iluminam os olhos.

O temor do senhor é puro
e permanece para sempre;
os juízos do Senhor são verdadeiros,
todos eles são retos.

São mais preciosos que o ouro,
o ouro mais fino;
são mais doces que o mel,
o puro mel dos favos.

2ª Leitura – 1 Cor 1, 22-25
Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios

Irmãos: Os judeus pedem milagres e os gregos procuram a sabedoria. Quanto a nós, pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios; mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.

MENSAGEM

Judeus e gregos, cada um à sua maneira, buscam seguranças. Os judeus procuram milagres que garantam a veracidade da mensagem anunciada; os gregos procuram as belas palavras, a coerência do discurso, a lógica dos argumentos… Na verdade, Jesus não Se apresentou como um Deus espetacular, a exibir o seu poder e as suas qualidades divinas através de gestos estrondosos e milagrosos, como os judeus estavam à espera; nem Se apresentou como o “mestre” iluminado de uma filosofia capaz de se impor pelo brilho das suas premissas e pela sua lógica inatacável, como os gregos gostariam.

A essência da mensagem cristã está na “loucura da cruz” – isto é, na lógica ilógica de um Deus que veio ao encontro da humanidade, que fez da sua vida um dom de amor e que aceitou uma morte maldita para ensinar aos homens que a verdadeira vida é aquela que se coloca integralmente ao serviço dos irmãos, até à morte. No entanto, foi precisamente dessa forma que Deus apresentou aos homens o seu projeto de salvação e de vida definitiva. Na cruz de Jesus manifestou-se, de forma plena, o poder salvador de Deus. Decididamente, considera Paulo, a lógica de Deus não é exatamente igual à lógica dos homens.

O caminho cristão não é uma busca de sabedoria humana, mas uma adesão a Cristo crucificado – o Cristo do amor e do dom da vida. Nele manifesta-se de forma humanamente desconcertante, mas plena e definitiva, a força salvadora de Deus.

ACLAMAÇÃO DO EVANGELHO – Jo 3,16
Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo, Senhor.
Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho Unigénito;
quem acredita n’Ele tem a vida eterna.

EVANGELHO – Jo 2, 13-25
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém. Encontrou no templo os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas e os cambistas sentados às bancas. Fez então um chicote de cordas e expulsou-os a todos do templo, com as ovelhas e os bois; deitou por terra o dinheiro dos cambistas e derrubou-lhes as mesas; e disse aos que vendiam pombas: «Tirai tudo isto daqui; não façais da casa de meu Pai casa de comércio».
Os discípulos recordaram-se do que estava escrito: «Devora-me o zelo pela tua casa». Então os judeus tomaram a palavra e perguntaram-Lhe: «Que sinal nos dás de que podes proceder deste modo?» Jesus respondeu-lhes: «Destruí este templo e em três dias o levantarei». Disseram os judeus: «Foram precisos quarenta e seis anos para se construir este templo e Tu vais levantá-lo em três dias?» Jesus, porém, falava do templo do seu corpo. Por isso, quando Ele ressuscitou dos mortos, os discípulos lembraram-se do que tinha dito e acreditaram na Escritura e nas palavras que Jesus dissera. Enquanto Jesus permaneceu em Jerusalém pela festa da Páscoa, muitos, ao verem os milagres que fazia, acreditaram no seu nome. Mas Jesus não se fiava deles, porque os conhecia a todos e não precisava de que Lhe dessem informações sobre ninguém: Ele bem sabia o que há no homem.

MENSAGEM

Os profetas de Israel tinham, em diversas situações, criticado o culto sacrificial que Israel oferecia a Deus, considerando-o como um conjunto de ritos estéreis, vazios e sem significado, uma vez que não eram expressão verdadeira de amor a Jahwéh; tinham, inclusive, denunciado a relação do culto com a injustiça e a exploração dos pobres (cf. Am 4,4-5; 5,21-25; Os 5,6-7; 8,13; Is 1,11-17; Jer 7,21-26). As considerações proféticas tinham, de alguma forma, consolidado a idéia de que a chegada dos tempos messiânicos implicaria a purificação e a moralização do culto prestado a Jahwéh no Templo. O profeta Zacarias liga explicitamente o “dia do Senhor” (o dia em que Deus vai intervir na história e construir um mundo novo, através do Messias) com a purificação do culto e a eliminação dos comerciantes que estão “no Templo do Senhor do universo” – Zac 14,21).

O gesto que o Evangelho deste domingo nos relata deve entender-se neste enquadramento. Quando Jesus pega no chicote de cordas, expulsa do Templo os vendedores de ovelhas, de bois e de pombas, deita por terra os trocos dos banqueiros e derruba as mesas dos cambistas (vers. 14-16), está a revelar-Se como “o messias” e a anunciar que chegaram os novos tempos, os tempos messiânicos.

No entanto, Jesus vai bem mais longe do que os profetas vétero-testamentários. Ao expulsar do Templo também as ovelhas e os bois que serviam para os ritos sacrificiais que Israel oferecia a Jahwéh (João é o único dos evangelistas a referir este pormenor), Jesus mostra que não propõe apenas uma reforma, mas a abolição do próprio culto. O culto prestado a Deus no Templo de Jerusalém era, antes de mais, algo sem sentido: ao transformar a casa de Deus num mercado, os líderes judaicos tinham suprimido a presença de Deus… Mas, além disso, o culto celebrado no Templo era algo de nefasto: em nome de Deus esse culto criava exploração, miséria, injustiça e, por isso, em lugar de potenciar a relação do homem com Deus, afastava o homem de Deus. Jesus, o Filho, com a autoridade que Lhe vem do Pai, diz um claro “basta” a uma mentira com a qual Deus não pode continuar a pactuar: “não façais da casa de meu Pai casa de comércio” (vers. 16).

Os líderes judaicos ficam indignados. Quais são as credenciais de Jesus para assumir uma atitude tão radical e grave? Com que legitimidade é que Ele se arroga o direito de abolir o culto oficial prestado a Jahwéh?

A resposta de Jesus é, à primeira vista, estranha: “destruí este Templo e Eu o reconstruirei em três dias” (vers. 19). Recorrendo à figura literária do “mal-entendido” (propõe-se uma afirmação; os interlocutores entendem-na de forma errada; aparece, então, a explicação final, que dá o significado exato do que se quer afirmar), João deixa claro que Jesus não Se referia ao Templo de pedra onde Israel celebrava os seus ritos litúrgicos (vers. 20), mas a um outro “Templo” que é o próprio Jesus (“Jesus, porém, falava do Templo do seu corpo” – vers. 21). O que é que isto significa? Jesus desafia os líderes que O questionaram a suprimir o Templo que é Ele próprio, mas deixa claro que, três dias depois, esse Templo estará outra vez erigido no meio dos homens. Jesus alude, evidentemente, à sua ressurreição. A prova de que Jesus tem autoridade para “proceder deste modo” é que os líderes não conseguirão suprimi-l’O. A ressurreição garante que Jesus vem de Deus e que a sua atuação tem o selo de garantia de Deus.

No entanto, o mais notável, aqui, é que Jesus Se apresenta como o “novo Templo”. O Templo representava, no universo religioso judaico, a residência de Deus, o lugar onde Deus Se revelava e onde Se tornava presente no meio do seu Povo. Jesus é, agora, o lugar onde Deus reside, onde Se encontra com os homens e onde Se manifesta ao mundo. É através de Jesus que o Pai oferece aos homens o seu amor e a sua vida. Aquilo que a antiga Lei já não conseguia fazer – estabelecer relação entre Deus e os homens – é Jesus que, a partir de agora, o faz.


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