O REINO DE DEUS
1º leitura 1Rs 3,5.7-12 - 2º leitura Rm 8,28-30
Evangelho Mt 14,44-52.
A
liturgia deste domingo convida-nos a refletir nas nossas prioridades, nos
valores sobre os quais fundamentamos a nossa existência. Sugere, especialmente,
que o cristão deve construir a sua vida
sobre os valores
propostos por Jesus, que deve sobrepor-se a todos os outros valores e
propostas.
O
texto do Evangelho deste domingo pode ser dividido em três partes. Em cada uma
delas, há aspectos e questões que convém pôr em relevo e ter em conta.
Na primeira parte, temos
duas parábolas – a parábola do tesouro escondido no campo e a parábola da
pérola preciosa (vers. 44-46). Ambas desenvolvem o mesmo tema e apresentam
ensinamentos semelhantes.
A questão principal
abordada nesta primeira parte é a da descoberta do valor e da importância do
Reino. Quer a parábola do tesouro escondido, quer a parábola da pérola
preciosa, sugerem que o Reino proposto por Jesus (esse mundo de paz, de amor,
de fraternidade, de serviço, de reconciliação que Jesus veio anunciar e
oferecer) é um “tesouro” precioso, que os seguidores de Jesus devem abraçar,
antes de qualquer outro valor ou proposta. Os cristãos são, antes de mais,
aqueles que encontraram algo de único, de fundamental, de decisivo: o Reino.
Ora, quando alguém encontra um “tesouro” como esse, deve elegê-lo como a
riqueza mais preciosa, o fim último da própria existência, o valor fundamental
pelo qual se renuncia a tudo o resto e pelo qual se está disposto a pagar
qualquer preço. Provavelmente, Mateus está a sugerir a esses cristãos a quem o
seu Evangelho se destina (adormecidos numa fé morna, inconsequente, pouco
exigente) que é preciso redescobrir e optar decisivamente por esse valor mais
alto, que deve dar sentido às suas vidas – o Reino. O cristão é confrontado, a
par e passo, com muitos valores e opções; mas deve aperceber-se de que o Reino
é o valor mais importante.
Na
segunda parte, Mateus apresenta o Reino na imagem de uma rede que, lançada ao
mar, apanha diversos tipos de peixes (vers. 47-50). Na versão apresentada por
Mateus, a parábola apresenta um ensinamento semelhante ao da parábola do trigo
e do joio (sobre a qual meditamos no passado domingo): o Reino não é um
condomínio fechado, onde só há gente escolhida e santa, mas é uma realidade
onde o mal e o bem crescem simultaneamente. Deus não tem pressa de condenar e
destruir. Ele não quer a morte do pecador; por isso, dá ao homem o tempo
necessário e suficiente para amadurecer as suas opções e para fazer as suas
escolhas (no Evangelho de Tomé, a versão é diferente: conta a história de um
pescador “sábio” que pesca vários peixes, mas fica só com o maior e lança os
outros ao mar. Aí, portanto, a parábola da rede e dos peixes apresenta uma
mensagem que vai na linha das parábolas do tesouro descoberto no campo e da
pérola preciosa. Alguns autores pensam que a versão apresentada no Evangelho de
Tomé constitui a versão primitiva da parábola da rede e dos peixes).
A
referência que Mateus faz (mais uma vez) ao juízo final é uma forma de exortar
os irmãos da sua comunidade no sentido de escolherem decididamente o Reino e
porem em prática as propostas de Jesus.
Na terceira parte do Evangelho que nos é proposto, Mateus apresenta um breve
diálogo entre Jesus e os discípulos (vers. 51-52).
Neste
diálogo temos uma espécie de conclusão de todo o capítulo. Mateus sugere que o
verdadeiro discípulo de Jesus é aquele que “compreende”. Ora, “compreender”, na
teologia mateana, significa “prestar atenção” e comprometer-se com o
ensinamento proposto. Os cristãos são, pois, convidados a descobrir a realidade
do Reino, a entender as suas exigências, a comprometerem-se com os seus
valores. A referência ao “escriba” que “tira do seu tesouro coisas novas e
velhas” pode referir-se aos judeus, conhecedores profundos do Antigo Testamento
(o “velho”), convidados agora a reflectirem essas velhas promessas à luz das
propostas de Jesus (o “novo”). É nessa dialéctica sempre exigente e
questionante que o verdadeiro discípulo encontra o caminho para o Reino; e,
depois de encontrar esse caminho, deve comprometer-se com ele de forma
decisiva, exigente, empenhada.
• Algumas pessoas e
grupos com um peso significativo na opinião pública procuram vender a ideia de
que a realização plena do indivíduo está num conjunto de valores que decidem
quem pertence à elite dos vencedores, dos que estão na moda, dos que têm êxito…
Em muitos casos, esses valores propostos são realidades efémeras, materiais,
secundárias, relativas. Quase sempre, por detrás da proposição de certos
valores, estão interesses particulares e egoístas, a tentativa de vender
determinada ideologia ou a preocupação em tornar o mercado dependente dos
produtos comerciais de determinada marca… O “sábio”, contudo, é aquele que está
consciente destes mecanismos, que sabe ver com olhar crítico os valores que a
moda propõe, que sabe discernir o verdadeiro do falso, que distingue o que
apenas tem um brilho doirado daquilo que, na essência, é um tesouro que importa
conservar. O “sábio” é aquele que consegue perceber o que efectivamente o
realiza e lhe permite levar a cabo, dentro da comunidade, a missão que lhe foi
confiada. Como é que eu me situo face a isto? O que me seduz e que eu abraço é
o imediato, o brilhante, o sedutor, ainda que efémero, ou é o que é exigente e
radical mas que me permite conquistar uma felicidade duradoura e concretizar o
meu papel no mundo, na empresa, na família ou na minha comunidade cristã?
• A figura de Salomão interpela também todos aqueles que detêm responsabilidades
na comunidade (seja em termos civis, seja em termos religiosos). Convida-os a
uma verdadeira atitude de serviço: o seu objectivo não deve nunca ser a
realização dos próprios esquemas pessoais, mas sim o benefício de toda a
comunidade, a concretização do bem comum.
• Em todas as cartas de
Paulo transparece o espanto que o apóstolo sente diante do amor de Deus pelo
homem. Este tema está, contudo, especialmente presente na Carta aos Romanos. O
nosso texto convida-nos a dar conta – outra vez – desse facto extraordinário
que é o amor de Deus (amor que o homem não merece, mas que Deus, com ternura,
insiste em oferecer, de forma gratuita e incondicional), traduzido num projecto
de salvação preparado desde sempre, e que leva Deus a enviar ao mundo o seu
próprio Filho para conduzir todos os homens e mulheres a uma nova condição.
Numa época marcada por uma certa indiferença face a Deus, este texto
convida-nos a tomar consciência de que Deus nos ama, vem continuamente ao nosso
encontro, aponta-nos o caminho da vida plena e verdadeira, desafia-nos à
identificação com Jesus, convida-nos a integrar a sua família. Nós, os crentes,
somos convidados a conduzir a nossa vida à luz desta realidade; e somos
convocados a testemunhar, com palavras, com acções, com a vida, no meio dos
irmãos que dia a dia percorrem connosco o caminho da vida, o amor e o projecto
de salvação que Deus tem.
• Diante da oferta de Deus, somos livres de fazer as nossas opções – opções que
Deus respeita de forma absoluta. No entanto, a vida plena está no acolhimento
desse “valor mais alto” que é o seguimento de Jesus e a identificação com Ele.
É esse o “valor mais alto”, o “tesouro” pelo qual eu optei de forma decidida no
dia do meu baptismo? Tenho sido, na caminhada da vida, coerente com essa
escolha?
• A primeira e mais
importante questão abordada neste texto é a das nossas prioridades. Para
Mateus, não há qualquer dúvida: ser cristão é ter como prioridade, como
objectivo mais importante, como valor fundamental, o Reino. O cristão vive no
meio do mundo e é todos os dias desafiado pelos esquemas e valores do mundo;
mas não pode deixar que a procura dos bens seja o objectivo número um da sua
vida, pois o Reino é partilha. O cristão está permanentemente mergulhado num
ambiente em que a força e o poder aparecem como o grande ideal; mas ele não
pode deixar que o poder seja o seu objectivo fundamental, porque o Reino é
serviço. O cristão é todos os dias convencido de que o êxito profissional, a
fama a qualquer preço são condições essenciais para triunfar e para deixar a
sua marca na história; mas ele não pode deixar-se seduzir por esses esquemas,
pois a realidade do Reino vive-se na humildade e na simplicidade. O cristão faz
a sua caminhada num mundo que exalta o orgulho, a auto-suficiência, a
independência; mas ele já aprendeu, com Jesus, que o Reino é perdão,
tolerância, encontro, fraternidade… O que é que comanda a minha vida? Quais são
os valores pelos quais eu sou capaz de deixar tudo? Que significado têm as
propostas de Jesus na minha escala de valores?
• A decisão pelo Reino,
uma vez tomada, não admite meias tintas, tibiezas, hesitações, jogos duplos.
Escolher o Reino não é agradar a Deus e ao diabo, pactuar com realidades que
mutuamente se excluem; mas é optar radicalmente por Deus e pelos valores do Evangelho.
A minha opção pelo Reino é uma opção radical, sincera, que não pactua com
desvios, com compromissos a “meio gás”, com hipocrisias e incoerências?
• Porque é que os
cristãos apresentam, tantas vezes, um ar amargurado, sofredor, desolado? Quando
a tristeza nos tolda a vista e nos impede de sorrir, quando apresentamos
semblantes carrancudos e preocupados, quando deixamos transparecer em gestos e
em palavras a agitação e o desassossego, quando olhamos para o mundo com os
óculos do pessimismo e do desespero, quando só nos deixamos impressionar pelo
mal que acontece à nossa volta, já teremos descoberto esse valor fundamental –
o Reino – que é paz, esperança, serenidade, alegria, harmonia?
• Mais uma vez o Evangelho convida-nos a admirar (e a absorver) os métodos de
Deus, que não tem pressa nenhuma em condenar e destruir, mas dá tempo ao homem
– todo o tempo do mundo – para amadurecer as suas opções e fazer as suas
opções. Sabemos respeitar, com esta tolerância e liberdade, o ritmo de
crescimento e de amadurecimento dos irmãos que nos rodeiam?