QUESTÕES ATUAIS DE TEOLOGIA MORAL
INTRODUÇÃO
A Bioética se apresenta como um campo amplo,
complexo e controvertido da Moral. Sua amplitude abarca desde questões
relativas à vida nascente até à vida em estado terminal. Diversos problemas dos
quais se ocupa a Bioética são bastante recentes, difíceis de serem avaliados
sob o ponto de vista ético, e até mesmo, difíceis de serem bem compreendidos e
explicados pelas próprias ciências. A discussão de questões próprias da
Bioética já começa a fazer parte do cotidiano das pessoas: assistindo TV, lendo
jornais, conversando em casa ou em roda de amigos. Fala-se, por exemplo, de
fecundação artificial (bebê de proveta), clonagem, aborto, transplante de
órgãos e eutanásia. É importante conversar sobre estes e outros assuntos de
Bioética, mas não se pode ficar no ‘achismo’, isto é, achando certo ou errado,
aprovando ou condenando, de modo simplista, sem conhecer bem os problemas em
questão. Por trás destas questões estão seres humanos concretos, vivendo ou
morrendo, realizando-se ou frustrando-se. Por isso, precisamos conhecer bem o
que dizem as ciências a respeito dessas questões, analisando-as sob o ponto de
vista ético, à luz da fé cristã, numa atitude de diálogo e de fidelidade ao
“Evangelho da Vida”, chamados à responsabilidade diante da vida.
1. PRINCÍPIOS
FUNDAMENTAIS DE BIOÉTICA
A
Teologia e o Magistério da Igreja têm oferecido importantes critérios ou
princípios para o discernimento ético-teológico das questões de Bioética. Ao
invés de nos perdermos na discussão de cada problema em particular, precisamos
encontrar critérios gerais de reflexão e ação que possam ser aplicados às
diversas situações que vão surgindo. Aí se colocam os princípios fundamentais
de Bioética, dentre os quais destacamos os que seguem.
1º) Princípio da inviolabilidade da vida humana. A vida humana, a
começar de sua fase embrionária, deve ser respeitada e promovida; não pode ser
destruída ou manipulada para fins de pesquisa ou por qualquer outro pretexto.
Esta postura decorre do critério primeiro ou princípio fundamental da bioética
teológica: o da dignidade inviolável do ser humano ou da sacralidade da vida
humana, da fase inicial à fase final, desde o primeiro instante de sua
existência até seu fim natural. A vida humana é sagrada, possui um valor imenso
que ninguém pode tirar, violar ou destruir, em qualquer fase de desenvolvimento
ou condição em que se encontre. A vida é dom de Deus, fruto da ação
criadora de Deus. O ser humano, enquanto “administrador”, acolhe,
administra e promove este dom, com responsabilidade.
2º) Outro princípio importante em Bioética refere-se à qualidade de
vida. De acordo com ele, é importante assegurar qualidade de vida às
pessoas, isto é, promover as condições básicas para a sustentação da vida e da
dignidade humana, seja no âmbito da saúde, seja campo dos direitos sociais.
Infelizmente, alguns entendem este princípio de modo equivocado, principalmente
ao aplicá-lo à vida de crianças que estão sendo gestadas com graves
deficiências, à vida de pacientes em estado terminal ou ainda à vida de pessoas
que praticam graves delitos. Este princípio, mal aplicado a essas situações,
levaria à falsa conclusão de que seria melhor acabar com a vida dessas pessoas,
já que a sua qualidade de vida encontra-se seriamente comprometida. Assim
sendo, não se pode compreender este princípio sem considerar o anterior. O
princípio da qualidade de vida está subordinado ao princípio da sacralidade
da vida ou da dignidade inviolável da vida humana em qualquer situação. Na
verdade, o princípio da qualidade de vida, quando bem entendido e aplicado, não
se opõe ao primeiro; antes, o completa. Considerar a vida sagrada, defender a
dignidade de todo ser humano, nos leva a fazer o máximo para assegurar
qualidade de vida, condições de vida digna. Menos qualidade não implica em
menor dignidade (anencefálicos, portadores de outras deficiências, pacientes
terminais). O valor de uma vida não pode ser medido por parâmetros de
qualidade/bem-estar físico/normalidade (cf. EV 63).
3º) Os princípios da beneficência e da não-maleficência,
destacados pela tradição da ética médica, afirmam que é preciso sempre fazer o
bem ao paciente, promover a sua saúde, sem causar-lhe danos. Embora estes
princípios sejam enfatizados na tradição da ética médica, trazem consigo a
tendência ao paternalismo e a dificuldade em definir o que é o “bem” do doente.
4º) O princípio da autonomia, hoje bastante difundido, destaca a
capacidade da pessoa em agir como sujeito, avaliando e decidindo o que fazer,
de modo livre e responsável. De acordo com este princípio, não basta fazer o
bem; é preciso, respeitar a consciência e a liberdade de um paciente,
informando-o a respeito de sua situação de saúde, de eventuais riscos e
vantagens de tratamentos, obtendo o seu consentimento ou o consentimento de
quem for por ele responsável, para realizar certos procedimentos médicos.
A partir dos anos 70, este princípio assume a dianteira na ética médica,
fruto das condições culturais do mundo moderno. A relação entre o médico e o
paciente passa a ser vista como relação entre dois sujeitos e não mais entre um
sujeito e um objeto, devendo compartilhar decisões e responsabilidades.
Dentre os problemas encontrados na aplicação deste princípio estão: a
limitação da capacidade decisória do médico, a preocupação excessiva com
documentos, a falta de condições para tomada de decisão da parte de pacientes e
uma concepção equivocada de autonomia e de liberdade, fechada no interesse
próprio.
5º) Outro princípio, de grande importância na realidade social
brasileira, é o da justiça. O princípio da justiça é essencialmente
necessário no campo da ética social em geral, mas é também fundamental para o
discernimento de problemas no campo da Bioética, principalmente, no campo das
pesquisas científicas e da saúde pública. É preciso promover a justiça no atendimento
médico das pessoas, no acesso aos serviços prestados por hospitais, assegurando
condições de saúde e tratamento aos mais pobres e excluídos da sociedade. O
princípio da justiça tem seu fundamento no direito humano à saúde, exigindo uma
distribuição justa, equitativa, dos serviços neste campo. O direito a fazer uma
cirurgia ou a fazer exames de saúde mais sofisticados, não poderia depender da
situação social, isto é, do prestígio ou riqueza de alguém, mas deveria ser
assegurado a todos, especialmente, aos que mais precisam em virtude da
gravidade de seu estado. Além disso, coloca-se aqui também a questão dos gastos
públicos com pesquisas científicas cujos interesses e resultados não beneficiam
o povo.
6º)
Outro critério fundamental para a avaliação de diversas questões de
Bioética, refere-se à necessidade de limites éticos da pesquisa
científica A validade dos esforços em favor da saúde por cientistas e
pesquisadores é o tom do capítulo referente a Bioética no documento 80 da CNBB (Evangelização
e missão profética da Igreja: desafios atuais), aprovado em 2005.
Entretanto, nem tudo que é tecnicamente possível é éticamente aceitável. A
valorização da ciência não implica em aceitação do cientificismo. A postura
cientificista de endeusamento e absolutização da ciência tem sido recusada,
inclusive no campo da epistemologia científica, cedendo lugar a uma postura
mais crítica, dinâmica, que destaca a provisoriedade do conhecimento
científico, o papel do sujeito e as condições sociais de produção do discurso
científico, com sua conseqüente não neutralidade ética.
2. CÉLULAS TRONCO
A Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, passou a dispor sobre célula germinal
humana (art. 3º VII), clonagem terapêutica (inc. X) e células-tronco
embrionárias (inc. XI), embora o projeto original somente se propusesse
regulamentar o uso de organismos geneticamente modificados (OGM), com
fundamento no artigo 225, parágrafo 1º, incisos II, IV e V da Constituição
(art. 3º VII), que apenas cuida da proteção do meio ambiente ecologicamente
equilibrado.
Quanto às células-tronco embrionárias, a nova lei passou a permitir a sua
utilização quando “obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in
vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes
condições: (a) – sejam embriões inviáveis, ou (b) - sejam embriões congelados
na data de publicação desta Lei, depois de completarem três anos, contados a
partir da data do congelamento” (Lei n° 11.105, de 24.03.05, art. 5º, incs. I e
II).
De acordo com a mesma Lei, são proibidas a engenharia genética em célula
germinal humana e a clonagem humana (art. 6º, I, e II).
A respeito da utilização de células tronco no campo das pesquisas e
tratamentos médicos, é importante considerar alguns pontos que têm sido
apresentados em documentos da Igreja e pronunciamentos de especialistas no
assunto:
a) Desde a concepção começa a vida humana, pois o ser que está
sendo gerado é ser humano (dali não irá nascer um animal qualquer); é vida
humana ou pessoa humana em potencial, com código genético próprio. A afirmação
do dinamismo da pessoa humana comporta o reconhecimento de que se trata de um
processo que tem sua fase embrionária, fase da vida pela qual todos passam. O
embrião apresenta uma seqüência do DNA típica e exclusivamente humana; cada ser
que a possui pertence à humanidade; é um ser humano, cujo direito à vida e à
integridade física deve ser respeitado. O embrião, apesar de tão pequenino,
possui a informação genética (genoma) que presidirá o seu processo de
desenvolvimento. Isto não é uma verdade de fé, mas uma afirmação que tem base
científica. Daí a recusa da manipulação de células-tronco embrionárias por
implicar necessariamente no sacrifício dos embriões, vida humana indefesa.
Além disso, é importante recordar o reconhecimento disso também no campo do
direito. A Constituição Brasileira (art. 5º) dispõe que o direito à vida é
inviolável para todos os seres humanos. Além disso, o artigo 4º da Convenção
Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de S. José da Costa Rica),
ratificada pelo Brasil, em 1992, estabelece que o direito à vida começa na
concepção. O Novo Código Civil (em vigor desde jan.2003), no art. 2º, diz: “a
personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a
salvo desde a concepção os direitos do nascituro”.
b) Pesquisas com a utilização de células-tronco adultas (encontradas na
placenta, no cordão umbilical e medula óssea), com resultados comprovados. A
CNBB, em seu Doc. 80, diz “sim” às pesquisas com células-tronco adultas, dentro
dos parâmetros éticos. Em relação às células-tronco embrionárias, na época de
aprovação do então projeto de lei de Biossegurança, cientistas interessados e
grupos de pressão apresentavam categoricamente as células-tronco embrionárias
como sendo a solução garantida dos problemas de portadores de deficiências. Uma
vez aprovada a lei, é que cientistas e certos noticiários passaram a afirmar
que as pesquisas demandarão muitos anos e que não se pode prometer qualquer
resultado.
d) Recusa de práticas eugenéticas, de seleção (eugenia), ou de
checagem genética para criar “humanos com pedigree”, conforme alertam
especialistas em Bioética.
e) A questão não pode ser vista de modo isolado, mas como parte de um contexto
maior, onde estão em jogo outras questões referentes à vida. Vai
ganhando espaço a idéia de que o ser humano não é inviolável, podendo ser usado
(comprado, vendido, fabricado, destruído) sempre que o interesse de alguns,
especialmente, interesses do mercado exigirem. Medidas que transbordam
laboratórios de genética, passando a influenciar a conduta das pessoas.
3. REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA
O grande desenvolvimento que se constata no campo
das ciências e da tecnologia tem provocado o surgimento de questões jamais
pensadas antes. Uma das mais importantes refere-se à legitimidade ética da
geração da vida humana em laboratório, denominada pelos especialistas de fecundação
in vitro, conhecida como bebê de proveta. Em nossa época, pela
primeira vez na história, há a possibilidade de se realizar a fecundação, isto
é, a geração de uma nova vida humana, fora da natural relação sexual de
um casal, isto é, juntando-se em laboratório o material (gametas) previamente
recolhido de um homem (espermatozóides) e de uma mulher (óvulos). No processo
de fecundação in vitro, devido ao risco de não se obter êxito, são
fecundados diversos óvulos, e depois, transferidos mais de um embrião ainda em
estágio bastante inicial para o útero ou para as trompas; a partir de então,
segue-se normalmente a gestação no útero materno. A fecundação artificial
costuma ser denominada homóloga, quando realizada a partir do próprio
casal, e heteróloga, quando se verifica o recurso a uma terceira pessoa
para se obter o esperma ou óvulo.
Ao falar de fecundação artificial ou de bebê de proveta, estamos
tratando de um acontecimento ainda recente. O primeiro nascimento a partir do
método da fecundação artificial a ser noticiado ocorreu na Inglaterra, em 1978
(Louise Brown); no Brasil, em 1984. Esta forma de reprodução humana
medicamente assistida foi, aos poucos, se espalhando, chegando até nosso
meio. No Brasil, há inúmeros centros de reprodução medicamente assistida.
Apesar do custo e das dificuldades que a envolvem, a fecundação artificial,
pela sua eficácia, foi se tornando acessível a muitos casais com graves
problemas de geração de uma nova vida pelo processo natural.
Este procedimento científico tem suscitado várias questões
que ainda estão sendo estudadas, a fim de se chegar a um discernimento
ético-teológico cada vez mais claro e aprofundado. A problemática não se
restringe, porém, ao âmbito da teologia moral. Há questões de natureza
filosófica a serem melhor refletidas e de natureza jurídica a serem definidas e
regulamentadas. As técnicas até agora praticadas trazem dificuldades admitidas
pelos próprios envolvidos.
A questão mais séria de caráter filosófico, ou mais
especificamente antropológico, é a questão do início da vida humana, ou do
assim denominado estatuto antropológico do embrião. A resposta a esta
questão encontra-se aqui abordada, ao se tratar das células-tronco
embrionárias. Uma outra grave dificuldade de cunho ético e jurídico, é a
questão dos embriões excedentes, isto é, o que fazer com os embriões não
implantados no útero materno, que permanecem congelados em laboratório: podem
ser destruídos? Até quando permanecem guardados? Podem ser utilizados em
experiências científicas? A quem pertencem? Podem ser doados a um outro casal?
Como vimos, o início da vida humana se dá no momento da
fecundação; aí ocorre a concepção de uma nova pessoa. Assim sendo, os embriões
devem ser tratados com o respeito devido a todo ser humano. A vida humana, a
começar de sua fase embrionária, deve ser respeitada e promovida; não pode ser
destruída ou manipulada para fins de pesquisa. Esta postura decorre do
mencionado princípio da dignidade inviolável do ser humano ou da sacralidade da
vida humana, da fase inicial à fase final.
Além dessas questões, o Magistério da Igreja tem destacado uma
outra, mais diretamente relacionada ao campo da moral matrimonial: o fato de
desligar-se o nascimento de uma nova vida do ato conjugal natural, isto é, a
questão da originalidade da transmissão da vida no matrimônio, através de
um gesto específico e natural dos esposos. A dissociação entre ato conjugal e
procriação não corresponde à situação ideal. Na linguagem empregada pelo
Magistério, a fecundação fica privada de sua perfeição própria, dos
significados e valores que se exprimem na linguagem do corpo e na união
das pessoas humanas.
A Igreja enfatiza este dado em seus dois principais
pronunciamentos a respeito da fecundação artificial: a Instrução Donum Vitae,
sobre o respeito à vida humana nascente e a dignidade da procriação,
publicada em 1987, e o Catecismo da Igreja Católica, nos números 2373 a
2379. Em ambos, a posição do Magistério da Igreja é contrária à fecundação
artificial, seja heteróloga ou homóloga, embora procurando compreender os
anseios do casal em dificuldades que busca a geração de um filho, e valorizando
o serviço prestado pelas ciências na busca de soluções para casais com
problemas nesse campo.
Uma resposta dada por teólogos e pelo Magistério à situação dos
casais que fazem a experiência da esterilidade física, é a proposta de
alternativas para a realização da fecundidade conjugal ou da transmissão
responsável da vida no casamento. Para falar disso, no documento Familiaris
Consortio (n. 41), João Paulo II emprega a expressão múltiplo serviço à
vida. Ao invés de ser pai ou mãe no sentido biológico, realiza-se a
fecundidade conjugal através da adoção de crianças, do serviço à crianças
carentes ou menores abandonados, da dedicação à crianças doentes vítimas de
câncer ou da aids, da promoção e defesa de crianças exploradas no trabalho e na
prostituição, etc. O sentido realizador da maternidade e paternidade, através
da adoção e da educação (maternidade adotiva, afetiva, educativa), tem sido
testemunhado por muitos casais que têm realizado esta experiência.
4. INTERVENÇÕES
TERAPÊUTICAS NA GESTAÇÃO
Considerando a ambivalência da intervenção no campo da reprodução humana com
finalidade terapêutica (ex. problemática da eugenia), é necessário um sério
discernimento ético da questão das intervenções terapêuticas na gestação, para
o qual são valiosos os seguintes pontos, apresentados pela Donum vitae:
a) É fundamental "salvaguardar os valores e os direitos da pessoa
humana", uma vez que "uma intervenção no corpo humano não atinge
apenas tecidos, órgãos e suas funções, mas envolve também, em diversos níveis,
a própria pessoa".
b) “Como para qualquer intervenção médica nos pacientes, devem ser consideradas
lícitas as intervenções no embrião humano sob a condição de que respeitem a
vida e a integridade do embrião, não comportem para ele riscos
desproporcionados e sejam orientadas para a sua cura, para a melhoria das suas
condições de saúde ou para a sua sobrevivência individual". Cita-se como
desejável "uma intervenção estritamente terapêutica que se proponha como
objetivo a cura de diversas doenças, como as que se devem a defeitos
cromossômicos".
c) Qualquer que seja a terapia, é fundamental o "consentimento livre e
informado dos pais".
d) "Algumas tentativas de intervenção no patrimônio cromossômico ou
genético não são terapêuticas, mas visam produzir seres humanos selecionados
segundo o sexo ou outras qualidades preestabelecidas. Estas manipulações são
contrárias à dignidade pessoal do ser humano, à sua integridade e à sua identidade".
e) Sobre a experimentação com embriões e fetos humanos: "se estão
vivos, viáveis ou não, eles devem ser respeitados como todas as pessoas
humanas; a experimentação não diretamente terapêutica com embriões é
ilícita". Os pais "não podem dispor nem da integridade física nem da
vida do nascituro".
5. CLONAGEM
A clonagem em si é um processo de reprodução assexuada. Trata-se de uma técnica
de geração da vida, através da qual se produz cópias de células ou de genes de
um organismo. “Clonar pode significar a tentativa de padronizar, anular as
diferenças entre os seres das mesmas espécies e até de espécies diferentes,
numa grave ameaça à biodiversidade” (CNBB, Doc. 80, p.127). Neste sentido, é
preciso enfatizar um “sim à biodiversidade”.
A questão ética se torna ainda mais séria e complexa, quando se trata de
clonagem humana, condenada geralmente pelos próprios cientistas. Por ser
fenômeno recente, que ao mesmo tempo fascina e amedronta o mundo contemporâneo,
é necessária redobrada prudência na sua avaliação ética. As seguintes
indicações são importantes no discernimento da questão:
a) A importância e a ambiguidade do progresso científico. O reconhecimento da
não neutralidade ética da ciência e da tecnologia postula a necessidade de
critérios éticos para orientar as práticas científicas, superando os critérios
correntes da eficácia e do prestígio.
b) Os riscos para o próprio ser humano devido às consequências desastrosas não
previstas na manipulação da vida. Há necessidade de maior respeito às leis da
natureza.
c) A problemática da instrumentalização política (racismo) e de práticas
discriminatórias.
d) A eventual dissolução da identidade das pessoas.
e) A reprodução sexual marcada pela variedade, enquanto a clonagem, pela
uniformidade.
Assim a Donum vitae resume sua postura ética frente ao fenômeno em
questão: "As tentativas ou hipóteses
destinadas a obter um ser humano sem conexão alguma com a sexualidade, mediante
<fissão gemelar>, clonagem ou partenogênese, devem ser consideradas
contrárias à moral por se oporem à dignidade da procriação humana, assim como,
da união conjugal".
Alguns pretendem legitimar a clonagem associando-a ao adjetivo “terapêutico”. A
respeito disso, assim argumenta a CNBB, no seu Documento 80:
“À primeira vista, tudo o que é terapêutico é bom. Na realidade, este é um
termo carregado ideologicamente, porque invocado com o propósito de justificar
o injustificável. Basta pensar em “aborto terapêutico”, “esterilização
terapêutica”, para se perceber a ambigüidade do termo. A rigor, a natureza
conhece clonagem no âmbito de seres unicelulares, de certas plantas, e até no
processo do desenvolvimento da vida humana: as células vão se replicando,
embora ao mesmo tempo se diferenciando. No caso da clonagem humana denominada
indevidamente de terapêutica, se procede a uma verdadeira clonagem, apenas
interrompendo o processo na altura das primeiras divisões celulares, para então
colher as células-tronco. Aqui se encontram ao menos três problemas: 1) como já
vimos antes, células embrionárias não se destinam a fins terapêuticos; 2) o
processo é o mesmo da clonagem pura e simples, agravado com a eliminação do
embrião; 3) a ação de clonar espécies esconde, por vezes, a tentativa de
padronizar para melhor comercializar. (3.3.3.)”
6. ABORTO
Diversas
são as causas sócio-culturais do aborto: situações de pobreza,
dificuldades financeiras em acolher mais um filho; gravidez indesejada,
por falha em métodos contraceptivos, por relacionamentos sexuais no namoro, por
relações extra-conjugais ou por estupro; problemas de saúde da mulher durante a
gravidez, com risco de vida; falta de conscientização a respeito da condição de
pessoa humana do embrião e do seu direito à vida; ausência de planejamento
familiar; liberdade fechada nos interesses do indíviduo, sem critérios, sem
responsabilidade diante da vida do outro; emancipação da mulher, com a
reivindicação de domínio sobre o próprio corpo; aceitação social de métodos
abortivos; disseminação de legislação pró-aborto.
A atitude
moral diante do aborto provocado depende, em primeiro lugar, do modo como se
define a questão do estatuto antropológico e ético do embrião. Além do que já
foi apresentado a respeito, ao tratar-se do tema das células-tronco
embrionárias, sob o ponto de vista científico e jurídico, a ética cristã
defende a dignidade e a inviolabilidade da vida humana desde o momento da sua
concepção, fundamentando-se na Palavra de Deus e na Tradição da Igreja, além da
argumentação de cunho filosófico centrada na natureza da pessoa humana.
O livro do Gênesis apresenta a vida como dom do Criador. No centro do Decálogo
está o mandamento em defesa da vida: "Não matarás" (Ex 20, 13).
Em diversas passagens bíblicas, é pressuposta a
realidade da vida humana e a sua grandeza no útero materno: a mãe dos macabeus
reconhecendo a grandeza da vida em seu seio como dom de Deus (2 Mac 7,20-23);
Jeremias, escolhido por Deus já no seio materno (Jr 1,5); João Batista
exultando de alegria no ventre materno, por ocasião da visita de Maria (Lc
1,41).
Na Igreja primitiva, desde os inícios, verifica-se uma severa condenação
do aborto, ao contrário do mundo greco-romano, onde se encontrava muito
difundido. Afirma a Didaqué: "Não farás morrer a criança pelo
aborto, nem a matarás depois de nascida" (II,2). A tradição eclesial foi
"constante e uniforme na condenação ao aborto" (cf. Praxis cristã,
vol.2, p. 85). Até celebrações litúrgicas contribuíram para o reconhecimento da
sacralidade da vida desde a concepção: a festa da concepção de Jesus
(Anunciação de Maria, 25/3), a nove meses exatos antes do seu nascimento;
a festa da concepção de Maria (08/12), também a exatos nove meses antes do seu
nascimento (Natividade de Maria, 08/09).
O Magistério recente da Igreja tem reiterado a condenação ao aborto e a defesa
da vida indefesa do nascituro. O Vaticano II, na Gaudium et spes (nº
51), afirma: "A vida humana desde sua concepção tem de ser salvaguardada
com o máximo cuidado". Paulo VI, na Humanae vitae (nº 14), condena
"a interrupção direta do processo generativo já iniciado e, sobretudo, o
aborto diretamente desejado e provocado, ainda que por razões
terapêuticas". A Declaração sobre o aborto provocado (nº12)
explicita: "O respeito à vida humana impõe-se desde que começa o processo
de geração. Desde o momento da fecundação do óvulo, inicia-se vida que não é
nem do pai, nem da mãe, mas de um novo ser humano, que se desenvolve por si
próprio. Nunca ele chegaria a ser humano, se não o fosse desde aquele momento".
A Instrução Donum vitae reitera: a vida humana deve ser respeitada
"desde o momento da concepção até a morte".
Além do exposto, na argumentação ética a respeito do aborto, é importante
considerar também os seguintes pontos:
a) o direito à vida de todo ser humano vem de Deus e não dos pais.
b) a defesa da vida inocente: desde a concepção, está presente uma vida humana
indefesa.
c) a problemática das conseqüências, ao menos potencialmente, para a saúde
física e psíquica da mulher (“síndrome pós-aborto”).
d) o risco de abrir caminho para a aprovação da pena de morte.
Apesar da gravidade do aborto, que na práxis penitencial continua a ser
"pecado reservado", é indispensável a caridade pastoral diante das
pessoas que o cometeram, proporcionando conversão e vida nova, a partir
da experiência da misericórdia de Deus e da caridade da Comunidade. Ao invés de
uma simples condenação do aborto, é importante agir para erradicá-lo. Dentre as
medidas necessárias, podemos destacar:
a) O combate à pobreza. Promoção da vida em todos os níveis.
b) A educação para o planejamento
familiar.
c) O diagnóstico da situação de saúde da mulher.
d) A formação da consciência em favor da vida.
e) Políticas públicas com programas adequados de orientação,
assistência e saúde.
7. ANENCEFÁLICOS
O Documento 80 da CNBB, aprovado em 2005, aborda a problemática da
anencefalia. Não se trata de ausência total do cérebro, mas de graus diversos
de má-formação do córtex cerebral; também não se trata de “nati-mortos”, uma
vez que reagem a estímulos e se comportam como os demais nascituros, com
possível sobrevida de dias e meses. Embora o número anual de
anencefálicos no Brasil estaria na ordem de uns 600 casos, o problema tem
merecido a devida atenção, considerando-se a gravidade da questão do aborto de
anencefálicos, defendido por alguns, chegando a ser objeto de medidas judiciais.
A postura da Igreja se exprime através de um “sim” à vida em
todas as etapas e em todas as suas manifestações.
Trata-se de uma criança especial que está sendo gerada; o fato de ser
ancencéfalo não torna o feto menos humano: ele pode sentir dor e responder a
estímulos. Sensibilizar-se com a situação da gestante não pode levar à
perda da sensibilidade diante da vida da criança. Também não é justo
encarar o anencéfalo de modo utilitarista, como eventual doador de órgãos;
neste caso, além da questão ética, é preciso considerar as dificuldades em se
estabelecer os critérios de diagnóstico que permita justificar a doação
sob o ponto de vista médico e ético, de tal modo que as crianças anencéfalas só
muito raramente poderiam ser capazes de doar órgãos.
Ao invés de eliminar os anencefálicos, é preciso eliminar, ao menos uma
reconhecida causa da anencefalia: a carência de ácido fólico, bem como, dar às
mães o necessário apoio e acompanhamento médico, psicológico e espiritual.
8. EUTANÁSIA
O tema da eutanásia, tempos atrás, era considerado coisa de
especialistas, ou então, assunto para europeus e norte-americanos. Nos últimos
anos, a situação começou a mudar entre nós. O tema passou a aparecer na grande
imprensa brasileira e foi se tornando objeto de debates e conversas. O
interesse pelo tema tem crescido nos meios acadêmicos; surgem livros e
artigos a respeito, em língua portuguesa. Isso não decorre apenas da
curiosidade das pessoas em torno de assuntos polêmicos ou apenas por causa do
interesse de estudiosos. A questão da eutanásia, entre nós, foi se propagando a
partir de fatos noticiados pela TV e jornais, ocorridos não só no
exterior, mas também no Brasil e devido a situações de pacientes terminais no
cotidiano de algumas famílias . Aquilo que parecia assunto apenas de
especialistas ou de interesse europeu e norte-americano começa a encontrar
lugar entre nós: nos acontecimentos e nas discussões. A eutanásia vai,
assim, aparecendo como um desafio ético também para nós. No mundo, existem hoje
Associações pelo Direito de Morrer com Dignidade, com grande número de
associados, defendendo o direito de se praticar a eutanásia.
A origem da palavra eutanásia é grega. Ela provêm de dois termos gregos:
eu, que significa bom, boa; e thanatos, que quer dizer morte.
Assim sendo, a palavra eutanásia, a partir de sua etimologia,
significaria boa morte. É aplicada àqueles casos em que alguém provoca a
morte de um paciente em estado terminal, julgando estar, assim, aliviando os
seus sofrimentos. Há casos em que o paciente encontra-se em coma e outros em
que o próprio paciente, em meio à dor, chega a pedir a morte.
Para discernir a questão da eutanásia sob o ponto de vista ético e teológico, é
importante ter presente, dentre outros, os seguintes critérios:
1. A vida humana tem valor em si mesma,
independentemente das condições em que se encontre. Não podemos cair numa
concepção utilitarista da vida humana, reduzida à capacidade de fazer, de
produzir. É preciso recordar o critério primeiro, o princípio fundamental da
bioética teológica: o da dignidade inviolável do ser humano ou da sacralidade da
vida humana, da fase inicial à fase final. A vida humana é sagrada; possui um
valor imenso que ninguém pode tirar, violar ou destruir. A vida é dom de
Deus, fruto da ação criadora de Deus. O ser humano acolhe, administra, e
promove este dom.
2. A atitude de defesa e promoção do direito à vida deve visar, de modo
especial, aquelas pessoas que se encontram mais sofridas e indefesas,
como é o caso de doentes em situação terminal.
3. Os doentes, em qualquer situação, mas sobretudo, em casos de extrema
gravidade, precisam de atenção, afeto e solidariedade. O pedido que um doente
pode chegar a fazer para que desliguem aparelhos e apressem a sua morte deve
ser visto como expressão da necessidade de alívio do sofrimento: não só
por meio de procedimentos médicos, mas também do afeto e apoio, dos que o
rodeiam. O que o doente quer, na verdade, é o alívio do sofrimento, e não
propriamente a morte.
4. É preciso considerar também o risco de falibilidade médica: erros de
avaliação ou de modificações imprevistas no estado do doente terminal podem
ocorrer, alterando o quadro previsto de morte do paciente, com a sua
recuperação inesperada e o prolongamento da sua vida.
5. A estes critérios anteriores, acrescenta-se ainda o risco de
comodismo e de arbitrariedade por parte dos familiares, diante do prolongamento
do estado de doentes em aparente fim de vida. Neste caso, a eutanásia seria uma
forma de descartar-se de alguém que passa a se apresentar como um incômodo.
À luz destes aspectos levantados, compreende-se a recusa da eutanásia,
sob o ponto de vista ético-teológico. Ainda que, em certos casos, quem a
pratica possa não ter completa responsabilidade moral pelo que está fazendo, a
prática da eutanásia continua eticamente inadmissível.
Assim o Catecismo da Igreja Católica resume a atual postura do
Magistério da Igreja a respeito da eutanásia:
...uma ação ou uma omissão que, em si ou na
intenção, gera a morte a fim de suprimir a dor, constitui um assassinato
gravemente contrário à dignidade da pessoa humana e ao respeito pelo Deus vivo,
seu Criador (nº
2278) .
Completa, a seguir:
Mesmo quando a morte é considerada iminente, os cuidados
comumente devidos a uma pessoa doente não podem ser legitimamente interrompidos.
(...) Os cuidados paliativos constituem uma forma privilegiada de caridade
desinteressada (nº 2279).
O que fazer, então, diante de uma situação em que um doente se encontre em
estado terminal?
a) Reconhecer e defender o valor e a dignidade de todo ser humano, a
começar dos mais fracos e sofredores, indefesos, como é o caso de paciente em
estado terminal.
b) Buscar os recursos médicos necessários para aliviar os seus
sofrimentos.
c) Ser solidário, demonstrar interesse, afeto, apoio fraterno, estar ao
seu lado.
d) Sustentar a esperança que brota da fé. Rezar pela pessoa e com ela.
Em nossa realidade brasileira e latino-americana, é preciso defender,
com máximo empenho, o direito de viver e não o de morrer. Do direito
fundamental de se viver com dignidade, decorre o direito dos mais pobres
à assistência médica e hospitalar, isto é, o direito de ligar e não de desligar
aparelhos nos hospitais. Sob este ponto de vista, o direito à eutanásia,
entre nós, torna-se ainda mais sem sentido. Há sentido, sim, em
lutar pela vida, promovendo as condições necessárias para se viver com
dignidade. Morrer com dignidade não pode ser tomado como sinônimo de eutanásia.
Morrer com dignidade é consequência do direito de se viver com dignidade.
9. DISTANÁSIA
O oposto da eutanásia é a distanásia, termo ainda pouco conhecido, mas que aos
poucos vai se divulgando. Significa manter a vida a todo custo,
artificialmente; adiar a morte iminente, com recursos a aparelhos sofisticados,
gastos excessivos e mais sofrimentos. Quando se constata morte cerebral, não há
sentido manter vida puramente vegetativa. Tratamentos cujo único resultado
presumível seria o retardamento forçado da morte e sofrimentos ainda maiores
não são eticamente justificados. Distingue-se o "deixar morrer"
dignamente, permitindo que a natureza siga o seu curso, e o "fazer
morrer" (eutanásia).
O texto Práxis Cristã (vol.2, p.108) fala em "crueldade
terapêutica", a ser rejeitada. Outros falam em “obstinação terapêutica”.
É importante fazer a distinção entre os meios empregados, isto é, os
instrumentos médico-hospitalares utilizados, para o justo discernimento da
questão. A argumentação moral, há muito utilizada, referia-se a meios
ordinários e extraordinários, afirmando que. não se pode impor meios extraordinários
a um paciente, sendo portanto lícito contentar-se com os meios normais que a
medicina pode oferecer (cf. Práxis cristã, vol.2, p.64). Utilizando o
mesmo raciocínio, prefere-se hoje falar em meios “proporcionais” e “não
proporcionais”, definidos a partir dos resultados esperados para a saúde ou a
sobrevida do doente, já que se torna cada vez mais difícil definir o que é
“ordinário” e “extraordinário” devido ao progresso constante da medicina.
Há, no Estado de S. Paulo, a Lei 10.241, promulgada em 1999, que reconhece o
direito do paciente em “recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para
tentar prolongar a vida”.
Em qualquer caso, os cuidados paliativos devem ser empregados, juntamente
com a presença fraterna e a ajuda espiritual aos pacientes
terminais, de extrema importância nesta fase da vida. Portanto, a recusa da
distanásia não implica em abandono do paciente terminal.
10. PENA DE MORTE
O assunto pena de morte tem sido motivo de muita discussão, de posições
acaloradas a favor ou contra, em roda de conversas, em programas de rádio ou
TV, em jornais e revistas. A questão chega a ser debatida, muitas vezes, sem a
devida profundidade e serenidade, baseada acima de tudo no fator emocional.
Discutir pena de morte implica em discutir valores como vida humana e justiça.
A discussão sobre a pena de morte exige reflexão séria a respeito da violência,
da criminalidade, da impunidade, etc., e das soluções para tanto. O assunto,
que já é, controvertido em si mesmo, torna-se ainda mais em nossa realidade
social.
O crescimento da violência e a divulgação maciça, muitas vezes,
sensacionalista, de crimes tem levado muita gente a achar que não há
outro meio para resolver essa situação do que a pena de morte. Contudo, hoje no
mundo, especialmente, na Europa, há uma forte tendência à abolição da pena de
morte.
Pessoas que defendem a pena de morte chegam a recorrer à Bíblia para
justificá-la. Ainda que bem intencionadas, mostram-se geralmente equivocadas:
desvirtua-se, muitas vezes, o sentido da mensagem bíblica, apegando-se
apenas às palavras dos textos, tirando-os de seu contexto maior. É preciso ter
presente a gradualidade da Revelação e o contexto sócio-cultural em que ela
ocorre. O homem vai compreendendo de modo lento e gradual, dentro das condições
históricas em que vive, a profundidade do projeto de Deus, centrado no valor da
vida e da dignidade humana. A orientação geral do AT é a defesa da vida.
A lei mosaica pretendia frear a vingança e a violência; não pode ser
interpretada como aprovação ou estímulo à práticas violentas.
A lei do olho por olho e dente por dente deve ser relida à luz do amor
misericordioso e da justiça do Reino, como ensina Jesus (Mt. 5,38-41), que vem para
que todos tenham vida e a tenham em abundância (Jo. 10,10). Ele
insiste na misericórdia, no amor ao inimigo, na gratuidade sem limites do amor
cristão. No episódio da adúltera, impede a aplicação da pena de morte
(Jo. 8,1-11). O próprio Cristo acaba vítima de uma forma de pena de morte da
época, a crucifixão.
Outros entendem mal a postura atual do Magistério da Igreja, encontrada
no Catecismo da Igreja Católica, interpretando-a como uma simples
aprovação ou, ainda pior, como uma espécie de recomendação da pena de morte. Os
dois parágrafos que dizem respeito a este tema se completam. O Catecismo,
em seu nº 2266, constata que o ensinamento tradicional da Igreja reconheceu a
pena de morte, em casos extremos. Trata-se de uma constatação e não de
uma recomendação. O nº 2267 apresenta a orientação da Igreja para o
presente. A proposta é de restrição máxima ao seu uso e de aplicação de
meios incruentos. Além disso, é importante ter presente a atual prática da
Igreja representada pelos pedidos de clemência para sentenciados. Ao longo do
seu pontificado, João Paulo II apresentou tais pedidos a governos responsáveis
por execuções dessa natureza, com o intuito de impedí-las.
Para um adequado discernimento ético da questão da pena de morte, é importante
ter presente ainda os seguintes aspectos, de ordem mais prática, que tem sido
motivo de discussão quando se toca no assunto:
1. Há riscos de erro judicial na aplicação da pena de morte, o que seria
irreparável, condenando inocentes à morte. Há muitos casos de julgamentos, em
diversos países, que não respeitam as normas internacionais que exigem certas
garantias. Nos Estados Unidos, pelo menos 350 pessoas condenadas à morte, entre
1900 e 1985, eram inocentes. Ainda que a maioria delas tenha conseguido evitar
a execução, ao menos para 25 a inocência foi demonstrada tarde demais. Além
disso, é preciso ter presente que, mesmo conseguindo escapar da morte,
permanece a experiência traumática do longo tempo transcorrido no chamado corredor
da morte, tempo da espera da execução. Um cartaz da Anistia Internacional,
anos atrás, estampava a figura de Cristo crucificado, lembrando que Jesus foi
vítima inocente da pena de morte em seu tempo.
2. A eficiência da pena de morte no controle da violência tem sido
contestado. Sua inutilidade na diminuição da criminalidade tem sido reconhecida
até mesmo pela polícia americana, conforme pesquisa com chefes de polícia feita
pelo Hart Research Association mostrando que apenas 1% deles apoiavam a
pena de morte como recurso para diminuir a criminalidade. Grande parte
acreditava em outras maneiras mais eficientes para isso, como a melhoria da
situação econômica, a diminuição do desemprego e combate mais eficiente às
drogas. Há muitos outros dados mostrando que a pena de morte não cumpre sua
pretendida função pedagógica, de inibir a criminalidade.
3. Embora a vida não possa ser avaliada por padrões econômicos, há quem
levante o argumento do alto custo da manutenção de um réu no sistema
penitenciário, para defender a pena de morte. Além de falho sob o ponto de
vista ético, o argumento não se baseia em dados objetivos, considerando-se as
enormes despesas de um processo de condenação à morte, em países que a adotam.
4. Não se pode esquecer a tendência discriminatória que acompanha a sua
aplicação: a pena de morte iria atingir, mais uma vez, os mais pobres,
considerando-se o seu grande número nas prisões e as deficiências na
defesa de réus pobres. Numa sociedade que discrimina e exclui, a pena de morte
poderá ser um instrumento a mais para tanto.
Concluindo, é preciso recordar a nossa tarefa maior diante desta
problemática que é a criação de uma nova cultura e de uma nova sociedade, capaz
de promover e defender a vida e não favorecer mecanismos que tornam ainda pior
o atual quadro de violência e morte. Ao invés do homicídio premeditado de
pessoas pelo Estado, através da pena de morte, é preciso buscar alternativas
para a realização da justiça e para a superação dos graves problemas sociais
que têm condenado tantos à morte desde o seu nascimento e que tem agravado a
situação da criminalidade: a miséria, a fome, o desemprego, a situação da
educação, etc.
11. DOAÇÃO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS
A questão da doação e transplante de órgãos tem se tornado cada vez mais
importante e delicada, em nossa realidade brasileira, marcada pela sofrida
condição de tantos que se encontram na longa fila de espera de transplantes,
pela falta de doadores ou de estruturas que pemitam viabilizar as próprias
doações e os transplantes. Na discussão do tema, encontram-se em jogo diversos
fatores: éticos, médicos, legais, sociais, culturais e religiosos.
Quando se analisa a questão, sob o ponto de vista ético-teológico ou sob o
enfoque legal, é importante considerar os vários tipos de transplantes,
tendo-se a vista os diferentes graus de dificuldades e controvérsias derivadas
da natureza de cada um.
O caso de transplantes dentro de um mesmo organismo, também conhecido como
auto-transplante, que consiste na transferência de tecidos, órgãos ou partes de
um lugar para outro do corpo da mesma pessoa, é o mais simples em termos
éticos. Nestes casos, é preciso considerar, além da necessidade efetiva de tal
procedimento, a proporção entre os riscos e os benefícios, tendo presente o
diagnóstico de especialistas.
Os transplantes entre pessoas vivas exigem maior discernimento ético e
cuidadosa avaliação médica, pois apresenta o problema da mutilação direta,
isto é, da extirpação de um órgão sadio, ordinariamente rejeitada pela moral,
bem como, o das consequências para a saúde e integridade do doador. Esta
postura tem sido justificada a partir da caridade cristã, do sacrifício da vida
em favor dos outros, da solidariedade humana, rejeitando-se qualquer forma de
comercialização ou a doação forçada. Permite-se a doação em caso de órgãos
duplos ou partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo, cuja retirada não traga
prejuízos para o adequado funcionamento do organismo do doador e corresponda a
uma necessidade indispensável para o receptor. Para tanto, é preciso avaliar os
riscos para o doador, os benefícios e possíveis problemas para quem recebe. Em
qualquer situação, é indispensável o consentimento livre e informado do doador,
sem omitir possíveis prejuízos.
Os transplantes realizados a partir de um cadáver têm se apresentado como o
principal meio para suprir a grande demanda existente. Uma das maiores
dificuldades relacionados a essa prática está no fato da retirada de órgãos
ocorrer quando o doador está em estado de morte encefálica. Alguns usam a
expressão morte cerebral, mas é mais adequado falar em morte
encefálica. Encéfalo é o nome utilizado para designar o cérebro e o tronco
cerebral. A ciência mostra que do encéfalo partem os comandos que mantém
pulsando o coração e os demais órgãos. Quando ocorre a morte encefálica, há uma
parada total e irreversível das funcões cerebrais: as células cerebrais não
funcionam mais e não têm possibilidade de voltar a funcionar, diversamente do
estado de coma. Uma vez constatada a morte encefálica, não há como impedir que
todos os órgãos do corpo, em pouco tempo, deixem de funcionar, com a sua
consequente deterioração. Constatar a morte encefálica equivale a declarar a
morte de uma pessoa, ainda que a parada cardio-respiratória não tenha ocorrido.
Na situação de morte cerebral, ainda funciona o coração, a pessoa ainda está
quente, embora com temperatura em drástica redução. É esta a situação que
possibilita a retirada dos órgãos, pois enquanto o coração está batendo, órgãos
como rins, pele, córneas e fígado, têm ainda sangue circulando por breve tempo.
Em caso de parada total do organismo, a decomposição rápida impediria o
aproveitamento dos órgãos.
Técnicas modernas da medicina detectam com precisão esta condição. Os
critérios para o diagnóstico de morte encefálica foram propostos, no Brasil,
pelo Conselho Federal de Medicina através da Resolução 1.480, de 08/08/97,
exigindo exames clínicos e complementares, com intervalos de tempo, que possam
demonstrar de forma inequívoca ausência de atividade cerebral. Além disso, a
atual legislação brasileira exige que a morte encefálica seja diagnosticada e
registrada por dois médicos que não façam parte das equipes de remoção e
transplante, e admite a presença de um médico de confiança da família do doador
no ato de comprovação e atestado.
Preservando-se o devido respeito ao corpo dos mortos, nesse tipo de doação e
transplante, mais do que a origem da doação, a questão mais delicada é a forma
de se fazer isso. Com a finalidade de estimular e promover a doação de órgãos,
chegou-se a aprovar uma lei estabelecendo a “doação presumida”: na ausência de
expressa manifestação de vontade em contrário, a retirada dos órgãos de uma
pessoa em morte encefálica estaria autorizada. Trata-se da Lei 9.434, de
04/02/97, regulamentada pelo Decreto nº 2.268, de 30/06/97, que entrou em vigor
em 01/01/98. Esta lei previa a manifestação contrária à doação através do
documento de identidade ou carteira de habilitação. Diante das inúmeras reações
contrárias à doação presumida e as dificuldades para viabilizá-la, foi sendo
modificada por medidas provisórias, até ser substituída pela atual Lei 10.211,
de 23/03/2001, cujo art. 4º afirma: “a retirada de tecidos, órgãos e partes do
corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica,
dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a
linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em
documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte”.
Entretanto, permanecem graves dificuldades: a falta de estrutura hospitalar
adequada para o rápido aproveitamento dos órgãos; a resistência da população
por desconhecimento a respeito do referido estado de morte encefálica ou
por desconfiança das instituições; o temor de comercialização de órgãos, uma
vez que o problema do mercado de órgãos humanos já chegou a ser denunciado. Neste
último aspecto, é preciso considerar que a legislação prevê a punição em caso
de compra ou venda de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano.
Muitos se perguntam a respeito de uma posição explícita do Magistério da Igreja
a respeito da questão. Em 1985, a Pontifícia Academia das Ciências, organismo
do Vaticano, pronunciou-se de modo favorável a aceitação da morte encefálica
como critério de morte, apoiando os transplantes de órgãos, desde que no
respeito à vontade do doador.
O Catecismo da Igreja Católica, em seu nº 2296, assim se expressa: O
transplante de órgãos não é moralmente aceitável se o doador ou seus
representantes legais não deram para isso explícito consentimento. O
transplante de órgãos é conforme à moral e pode ser meritório se os perigos e
os riscos físicos e psíquicos a que se expõe o doador são proporcionais ao bem
que se busca no destinatário. É moralmente inadmissível provocar diretamente a
mutilação que venha a tornar alguém inválido ou a morte de um ser humano, mesmo
que seja para retardar a morte de outras pessoas
O Papa João Paulo II, em sua encíclica Evangelium Vitae, enfatizou a
necessidade do cristão colocar-se a serviço do Evangelho da Vida, isto é, de
promover e defender a vida humana iluminado pela fé em Cristo, pelo Evangelho:
“respeitar, amar e promover a vida de cada irmão, segundo as exigências e as
dimensões do amor de Deus em Jesus Cristo. Ele deu a sua vida por nós, e
nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos (1Jo 3,16)”, recorda o Papa
no número 77 desta carta.
A doação de órgãos pode revelar-se, de fato, como sinal de caridade
cristã, de doação de si próprio em favor do irmão, um especial exercício de
solidariedade, tão precioso e necessário em nosso tempo. Urge continuar os
esforços para conscientizar as pessoas, a fim de que as doações possam crescer
como fruto de consentimento consciente, motivado pelas exigências do amor
cristão, à luz da fé em Cristo, que deu sua vida para que tenhamos a Vida.
CONCLUSÃO
Outras questões de Bioética poderiam ainda ser
elencadas, ampliando a nossa visão deste campo vasto e complexo, ajudando-nos a
fazer um correto discernimento de situações específicas. Entretanto, não basta
discutir questões de Bioética ou contentar-se em compreendê-las sob o ponto de
vista da ética-teológica. É preciso engajar-se, comprometer-se, na luta em
defesa da vida, especialmente, onde a vida e a dignidade humanas encontram-se
mais feridas.
Promover a dignidade humana, defender a vida, exige iniciativas
concretas por parte das comunidades cristãs e de tantos movimentos e
organizações sociais. Graças a Deus, muito se tem feito: os sinais de esperança
se fazem notar, seja no campo da oração e da reflexão, seja no campo das
práticas solidárias. Contudo, muito resta a fazer. A fé no Deus da Vida motiva
e sustenta a luta dos cristãos em favor da Vida plena. “O Evangelho da Vida
está no coração da mensagem de Jesus”, conforme recorda João Paulo II, na Evangelium
Vitae. Os cristãos são chamados a anunciar e testemunhar, hoje, a
boa-nova da Vida anunciada por Jesus.
JOSÉ INALDO LIMA - MESC,P.